2 de jan. de 2008

O Poeta Transformou as Ruínas da Cidade...




Certa vez Clarice Lispector, no esforço de conquistar o esplendor e as ruínas de Brasília, chegou a afirmar que aqui ninguém morre. Nunca. O espanto e a admiração de Lispector nos conduz a uma cidade que viveria do cruzamento da dialética do futuro pontuada por marcas fantasmagóricas do homem do passado. Retomo a poética assombrada de Clarice Lispector para falar de um desses homens, que, no meio de uma cidade cheia de luz, sombras e ruínas, soube estabelecer uma das melhores contribuições à nossa cultura urbana juvenil. Falar de Renato Russo significa discutir a herança de um grupo geracional e nos remeter às experiências da emergência do rock brasiliense - do Aborto Elétrico, Legião Urbana, Capital, Detrito, RPM, Plebe Rude.

Então, talvez, para pensarmos a relação entre Renato Russo e Brasília seja necessário refazermos um percurso da própria história dos anos 80 e as várias relações poéticas dos roqueiros com a cidade.

Renato, este sim um nome que não morre, pode ser visto como um rapaz de educação principesca capaz de entender o movimento de formação da própria cidade, tomar consciência do seu tempo, de sua geração e mergulhar fundo em suas contradições. Ele não foi o único a realizar essa experiência na curta histórica do rock/pop nacional. Me parece que a diferença dele para outros poetas do rock é que ele (Renato) era um mito e, principalmente, porque tinha consciência de que era um mito. O melhor de tudo: sabia elaborar isso; sabia como permanecer na condição de mito. Não é possível entender a relação entre o poeta e a cidade acreditando que Renato foi apenas um músico capaz de vender milhões de discos. Era isso também, mas perseguia uma estranha combinação entre sucesso da indústria cultural e os processos de crítica social. Certa vez, lembro, ele chegou a afirmar que queria ser um Duran Duran com as letras de Bob Dylan.

Suas músicas estão pontuadas por um sentimento de conquista de modernidade que tem como base a perda de sentido das coisas (da moral, do amor, da solidariedade, da perspectiva de liberdade, da ilusão do trabalho) e ao mesmo tempo mostra uma espécie de reencantamento do mundo. Utopias.

A procura por utopias na poesia de Renato Russo não é ingênua, mas permeada de contradições. As suas letras, de um modo geral, constroem uma fala problematizadora do homem contemporâneo ao se debater com a promessa do sonho e o uso instrumental de seus sentimentos, desejos e vontades. De uma certa forma essas foram marcas simbólicas do "Rock Brasil", emergente dos anos 80. Legião, Titãs e Paralamas pontuaram de modos diferentes essa tendência crítica que, mesclada com as experiências individuais dos componentes das bandas, vai discutir as questões da festa, da moda, as primeiras descobertas do amor, a política, a injustiça social, a repressão, a ética, a censura.

Essas temáticas vão se concretizar em músicas como Geração Coca-Cola, Tempo Perdido, Andrea Doria, Que País é Este?, A Dança e Faroeste Caboclo, entre outras. De uma certa forma, são músicas que pontuam o enfrentamento de um Eu-poético e jovem, com a conquista de um processo de modernidade experimentado, sobretudo, na cidade.

Em Música Urbana 2, Renato realiza uma espécie de panorâmica sobre a cidade e recolhe estilhaços da cena urbana para lhe fazer um elogio (transformando clichês da vida noturna em sons, ruídos e música). "Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana/Nas ruas os mendigos com esparadrapos podres/Cantam música urbana..." É um tipo de construção poética que sugere a relação do poeta com a cidade urbana brasileira. Só para termos uma idéia da delicadeza dessa relações, podemos comparar a disposição de Renato Russo a de Paulo Ricardo (RPM) no espaço urbano. Após falaram de suas preferências musicais, de leituras e experiências profissionais, os dois músicos comentam a vida em Brasília. Paulo Ricardo inicia afirmando o seu desgosto com a cidade, com seus grupelhos e seus guetos: "Aqui é para filhos de militares, todo mundo é filho de alguém, não se misturam, não trocam idéias... Era uma cidade muito boa para velho e criança". Renato Russo postula um caminho diferente, reelaborando as possíveis mesquinharias da cidade: "Engraçado, pois a gente pegou isso e começou a trabalhar justamente em cima disso, para anarquizar mesmo".

Quando recolho o exemplo dos dois músicos não pretendo compará-los para fazer qualquer julgamento (afinal ambos construíram um discurso possível em um momento exato e historicamente colocado). A intenção é muito mais entender a dinâmica da relação entre o poeta e a cidade. Renato não se afasta da cidade; vive suas ruínas no esforço de criação de um projeto ainda utópico marcado pelas heranças da modernidade.

Talvez seja a longuíssima Faroeste Caboclo que melhor clareie essa visão de modernidade que Renato identificou no país. As experiências e situações presentes na trajetória de João de Santo Cristo vão encontrar alguma verossimilhança nas tensões que uma multidão de pessoas comuns enfrentam em seu dia-a-dia nas cidades brasileiras. Nas imagens e símbolos de sua via-crúcis estão inscritos muitos heróis anônimos que resistem em uma situação de combate e de duelo, no enfrentamento com o mundo moderno e todas as suas manifestações: "um motorista de táxi me disse que era a História do irmão dele", disse Renato Russo certa vez.

A música da Legião procura, na maioria das vezes, construir sentido, indicar caminhos e acenar com certas verdades ­ isso de algum modo a coloca dentro de um projeto de modernidade que postula principalmente um intercâmbio entre o indivíduo e os processos sociais. Lembro de uma entrevista de Renato Russo na qual ele, parodiando Bob Dylan, dizia que o bom pop era justamente isso: "a ligação do indivíduo e essa bagunça toda que está aí". Ele mobilizou esse conceito em suas músicas e, me parece, em sua curta existência. Notemos, por exemplo, a sua relação com Brasília. Pode-se acusar Renato Russo de muitas coisas, menos que ele teve uma relação alienada com Brasília. O músico, amado e celebrado hoje, foi vaiado outras vezes e chegou a ser proibido de fazer shows em Brasília depois do incidente do Mané Garrincha ­ uma experiência de espetáculo que ainda não está totalmente resolvida na história cultural da cidade. Renato Russo ­ como diria seu amigo e ex-produtor de shows da Legião Fernando Artigas ­ conseguiu traduzir Brasília para si mesmo e algumas vezes foi injustiçado. Talvez por isso ele possa ser entendido, simbolicamente, como um daqueles homens do futuro de Clarice Lispector: aqueles que não morrem. Nunca.

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